Wednesday, September 03, 2008

Ditoso seja aquele que somente





Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder nalgum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando absente,
Não sente mais que a pena das lembranças,
Porque, inda mais que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem o coração atormentado.

Mas triste de quem se sente magoado
De erros em que não pode haver perdão,
Sem ficar na alma a mágoa do pecado.

Luís de Camões

Ao desconcerto do Mundo




Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.

Luís de Camões

Tortura




Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida verdade, o Sentimento!
- E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!...

Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
- E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento...

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!

Florbela Espanca

Monday, September 01, 2008

Miserável



Tu és,
Aquele em que o meu olhar se poisa por um breve momento,
Tão breve mas que me parece uma eternidade.

Um rosto sem nome,
Indiferente ao que te rodeia,
Encostado a uma parede qualquer.

Da tua boca não saem palavras,
Apenas a aura de tristeza que te envolve,
Permite sentir a vida em ti.

Mendigas sem palavras, sem movimentos,
Sem um pedido.

Tu és,
Aquele que todos olham cheios de medo,
O que não se deve olhar durante muito tempo,
Porque traz uma dor profunda desconhecida.

Tu és,
O que não se deve pensar ser um dia,
Aquele que faz surgir perguntas,
Perguntas que causam incómodo.

Aquele ao qual a história da vida,
Pregou uma partida,
Aquele que tem muita dor para contar.

Como explicar a tua situação,
Como resistir à vontade de te ignorar,
De fazer como se não estivesses ali
Encostado àquela parede vazia.

Sem nada,
Sem ninguém,
Sozinho na tua terrível mágoa,
Uma mágoa muda que transborda contra a tua vontade,
Que a tua modéstia e passividade perante o passar dos dias,
Que os teus olhos baixos,
Escondem.

Talvez seja vergonha,
A causa desses traços no teu rosto sem vida.

Tu és,
O resultado do meu,
Do nosso egoísmo.

08/12/2000
Catarina Louraço