Tuesday, February 27, 2007

O insecto



Das tuas ancas aos teus pés
quero fazer uma longa viagem.

Sou mais pequeno que um insecto.

Percorro estas colinas,
são da cor da aveia,
têm trilhos estreitos
que só eu conheço,
centimetros queimados,
pálidas perspectivas.

Há aqui um monte.
Nunca dele sairei.
Oh que musgo gigante!
E uma cratera, uma rosa
de fogo humedecido!

Pelas tuas pernas desço
tecendo uma espiral
ou adormecendo na viagem
e alcanço os teus joelhos
duma dureza redonda
como os ásperos cumes
dum claro continente.

Para teus pés resvalo
para as oito aberturas
dos teus dedos agudos,
lentos, peninsulares,
e deles para o vazio
do lençol branco
caio, procurando cego
e faminto teu contorno
de vaso escaldante!

Pablo Neruda

Instantes



Se eu pudesse viver novamente a minha vida,
Na próxima trataria de cometer mais erros.
Nao tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Seria mais tolo ainda do que tenho sido,
Na verdade bem poucas coisas levaria a sério.
Seria menos higiénico.
Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
Subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos lentilha,
Teria problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu a vida sensata e produtivamente cada minuto da sua vida ;
Claro que tive momentos de alegria.
Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos.
Porque, se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos, não percas o agora.
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termómetro,
Uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas;
Se voltasse a viver, viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera,
E continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua,
Contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais criança,
Se tivesse outra vez uma vida pela frente,
Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo.

Jorge Luiz Borges

Kyrie (O Senhor)



Em nome dos que choram,

Dos que sofrem,

Dos que acendem na noite o facho da revolta

E que de noite morrem,

Com a esperança nos olhos e arames em volta.

Em nome dos que sonham com palavras

De amor e paz que nunca foram ditas,

Em nome dos que rezam em silêncio

E falam em silêncio

E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.

Em nome dos que pedem em segredo

A esmola que os humilha e os destrói

E devoram as lágrimas e o medo

Quando a fome lhes dói

Em nome dos que dormem ao relento

Numa cama de chuva com lençóis de vento

O sono da miséria, terrível e profundo.

Em nome dos teus filhos que esqueceste,

Filho de Deus que nunca mais nasceste,

Volta outra vez ao mundo!


Ary dos Santos

Monday, February 26, 2007

Há tanto tempo (espero por ti)




Há tanto tempo espero por ti
na solidão do meu lugar
vem aquecer-me a cama
traz flores para o jantar

Sempre habitaste o meu coração
és a razão do meu fervor
mas não te vejo a cara
não sinto o teu calor

Podes contar ao mundo
como eu te procurei
quando me for embora
diz que te encontrei

Mesmo que tu não sejas real
ou sejas quem eu não previ
hei-de inventar-te sempre
hei-de esperar por ti

Podes contar ao mundo
como eu te procurei
quando me for embora
diz que te encontrei

quando eu me for embora
diz que te encontrei


Jorge Palma

Amor Amor




Quando o mar
Quando o mar tem mais segredo
Não é quando ele se agita
Nem é quando é tempestade
Nem é quando é ventania
Quando o mar tem mais segredo
É quando é calmaria

Quando o amor
Quando o amor tem mais perigo
Não é quando ele se arrisca
Nem é quando ele se ausenta
Nem quando eu me desespero
Quando o amor tem mais perigo
é quando ele é sincero


Maria Bethânia

Wednesday, February 21, 2007

Retrato ardente




Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.

Eugénio de Andrade

Lua Adversa



Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Cecília Meireles

Monday, February 19, 2007

O mar


Ondas que descansam no seu gesto nupcial
abrem-se caem
amorosamente sobre os próprios lábios
e a areia
ancas verdes violetas na violência viva
rumor do ilimite na gravidez da água
sussurros gritos minerais inércia magnífica
volúpia de agonia movimentos de amor
morte em cada onda sublevação inaugural
abre-se o corpo que ama na consciência nua
e o corpo é o instante nunca mais e sempre
ó seios e nuvens que na areia se despenham
ó vento anterior ao vento ó cabeças espumosas
ó silêncio sobre o estrépito de amorosas explosões
ó eternidade do mar ensimesmado unânime
em amor e desamor de anónimos amplexos
múltiplo e uno nas suas baixelas cintilantes
ó mar ó presença ondulada do infinito
ó retorno incessante da paixão frigidíssima
ó violenta indolência sempre longínqua sempre ausente
ó catedral profunda que desmoronando-se permanece!

António Ramos Rosa

Saturday, February 17, 2007

O tempo e o vento




(Nosso amor no tempo ficou
Nosso amor o vento levou)

Nosso amor bonito como a primavera,
A razão e a espera do melhor da vida
Desse amor tão grande, tanta poesia
Tudo que eu queria, ilusão perdida

(Nosso amor no tempo ficou
Nosso amor o vento levou)

Nosso amor de sonhos hoje inesquecíveis
Dias tão alegres, noites tão felizes
Loucas madrugadas e manhãs cansadas
Deixadas ao vento

Nosso amor amado entre abraços e beijos
Um sonho dourado de ousados desejos
De praias desertas, loucuras discretas
Nas telas do tempo

(Nosso amor, no tempo ficou
Nosso amor, o vento levou)

Mas o vento sopra e o tempo passa
E os risos aos poucos perderam a graça
O amor que existia sem querer vivia
Seu pior momento

Veio então a fúria de todos os ventos
Agitando as águas daqueles momentos
E nas tempestades só restou do amor
Um mar de saudade

(Nosso amor no tempo ficou
Nosso amor o vento levou)

Mas quem sabe um dia com o passar do tempo
Nas voltas do mundo, na calma do vento
Esse amor quem dera voltar como as flores
Noutra primavera

(Nosso amor no tempo ficou
Nosso amor o vento levou)

Nosso amor bonito como a primavera,
A razão e a espera do melhor da vida
Loucas madrugadas e manhãs cansadas
Deixadas ao vento
Deixadas ao vento

Nosso amor amado entre abraços e beijos
Um sonho dourado de ousados desejos
O amor que existia sem querer vivia
Seu pior momento

Roberto Carlos - Erasmo Carlos

O Poço




Cais, às vezes, afundas
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profunduras da tua existência.

Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?

Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.

Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.

Radiosa me sorri
se minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.

Dá-me amor, sorri-me
e ajuda-me a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.

Pablo Neruda

O Livro dos Amantes




I

Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.

Natália Correia

Noite de saudade






A Noite vem poisando devagar
Sobre a Terra, que inunda de amargura...
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu oiço a Noite imensa soluçar!
E eu oiço soluçar a Noite escura!

Porque és assim tão escura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó Noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu sei donde me vem...
Talvez de ti, ó Noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!

Florbela Espanca

Thursday, February 08, 2007

Tatuagem






Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem
E também pra me perpetuar em tua escrava
Que você pega, esfrega, nega
Mas não lava

Quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta
Morta de cansaço

Quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem
Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo
Em carne viva

Corações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo
Mas não sentes

Chico Buarque de Hollanda

Meu amor, meu amor


Meu amor meu amor 
meu corpo em movimento

minha voz à procura

do seu próprio lamento.


Meu limão de amargura meu punhal a escrever

nós parámos o tempo não sabemos morrer
e nascemos nascemos

do nosso entristecer.

Meu amor meu amor

meu nó e sofrimento

minha mó de ternura
minha nau de tormento


este mar não tem cura este céu não tem ar
nós parámos o vento não sabemos nadar

e morremos morremos
devagar devagar.

José Carlos Ary dos Santos

O que há em mim é sobretudo cansaço



O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas.

Essas e o que faz falta nelas eternamente;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço, Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo, Cansaço...

Álvaro de Campos

Monday, February 05, 2007

Máquina do Mundo



O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto é matéria.

Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,

esta fresta de nada aberta no vazio,

deve ser um intervalo.

Rómulo de Carvalho

Sunday, February 04, 2007

Libertação




Fui à praia, e vi nos limos
a nossa vida enredada:
ó meu amor, se fugimos,
ninguém saberá de nada.

Na esquina de cada rua,
uma sombra nos espreita,
e nos olhares se insinua,
de repente uma suspeita.

Fui ao campo, e vi os ramos
decepados e torcidos:
ó meu amor, se ficamos,
pobres dos nossos sentidos.

Hão-de transformar o mar
deste amor numa lagoa:
e de lodo hão-de a cercar,
porque o mundo não perdoa.

Em tudo vejo fronteiras,
fronteiras ao nosso amor.
Longe daqui, onde queiras,
a vida será maior.

Nem as esp'ranças do céu
me conseguem demover
Este amor é teu e meu:
só na terra o queremos ter.

David Mourão-Ferreira

Friday, February 02, 2007

de profundis amamus




Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes

O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

Mário Cesariny

Hora Grave




Quem agora chora nalgum lugar do mundo,
Sem razão chora no mundo,
Chora por mim.

Quem agora ri nalgum lugar na noite,
Sem razão ri dentro da noite,
Ri-se de mim.

Quem agora caminha nalgum lugar no mundo,
Sem razão caminha no mundo,
Vem a mim.

Quem agora morre nalgum lugar no mundo,
Sem razão morre no mundo,
Olha para mim.

Rainer Maria Rilke


Coisa Amar



Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente

e as ilhas que só há no verbo amar.

Contar-te longamente longamente.


Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.

E mar. Amar: as coisas perigosas.


Contar-te longamente que já foi

num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te longamente como dói

desembarcar nas ilhas misteriosas.

Contar-te o mar ardente e o verbo amar.

E longamente as coisas perigosas.


Manuel Alegre

Tenho pena e não respondo




Tenho pena e não respondo.
Mas não tenho culpa enfim
De que em mim não correspondo
Ao outro que amaste em mim.

Cada um é muita gente.
Para mim sou quem me penso,
Para outros - cada um sente
O que julga, e é um erro imenso.

Ah, deixem-me sossegar.
Não me sonhem nem me outrem.
Se eu não me quero encontrar,
Quererei que outros me encontrem?

Fernando Pessoa