Wednesday, June 20, 2007

Cântico Negro


 «Vem por aqui» - dizem-me alguns com olhos doces, 
Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom se eu os ouvisse

Quando me dizem: «vem por aqui»!

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.
Não, não vou por aí!

Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,

Por que me repetis: «vem por aqui»?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.


Como, pois, sereis vós

Que me dareis machados, ferramentas, e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.

Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: «vem por aqui»!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí.


José Régio

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